Quero compartilhar com vocês uma bela carta que li hoje, em que me espelho, sobre a angústia em face da multiplicidade de desejos, escolhas e caminhos que me oferece a vida vida... essa castração que é o escolher, e abrir mão dos outros caminhos.
Cada escolha é um corte, abrindo-se mão das outras possibilidades, em função de uma decisão tomada nem sempre com tanto critério ou recurso. Será a escolha feita a melhor? Só se sabe do caminho caminhando...
Hoje, quando começo a namorar, abrindo mão de outras possibilidades e mulheres em função de uma mulher, me deparo com esse paradoxo. Mas a reflexão sobre o demônio de Nietzsche me conforta. Escolheria essa mesma pessoa, se tivesse que escolher a mesma pessoa por toda a eternidade?
E a mesma régua que estou usando doravante para todas as minhas escolhas: meu emprego, minha vocação, minha vida, meus passatempos e amigos... se tivesse que ser, ter e fazer o mesmo, se tivesse que repetir a mesma vida, as mesmas circunstâncias, as mesmas pessoas, seria uma céu ou um inferno?
Talvez seja esse o céu e o inferno: as escolhas que fiz nesta vida se repetem como eco por toda a eternidade... uma eternidade bela ou desastrosa de acordo com as escolhas que fiz... e você, para onde está indo?
A carta a que me referi no início foi escrita pelo filósofo espanhol José Ortega Y Gasset a seu discípulo, também filósofo e madrilenho, Julian Marias, no momento da transmissão da liderança da Escola de Madrid.
É extraordinária e merece a nossa reflexão. Fala sobre a angústia da liberdade de escolha, e o que fazer com essa angústia. Colocar-se à deriva, sem escolher, eternamente disponível ao momento, às mulheres, ao devir, ao fluxo? Ou mergulhar fundo no próprio desejo, seguir a vocação, o sonho, e abrir mão de tudo o que se coloca entre mim e meu desejo?
“O grande drama da vida talvez esteja em sua própria construção, naquilo que devemos fazer com ela, como o grito desesperado de São Paulo ao pronunciar ‘o homem tem que ser edificante’, cruel exigência ou maravilhoso favor. Nessa edificação ganha a imaginação a princípio. Mas só a princípio, já que ao efetivar-se o sonho, perdemos parte dessa grande mãe criativa, que tantas vezes se oculta na realidade que o mundo insiste em chamar de verdade.
Construímo-nos exatamente como o novelista constrói seus personagens. Somos novelistas de nós mesmos e se não o fôssemos, jamais poderíamos entender qualquer obra literária ou poética. Quem não percebe o autor de sua vida, não aprecia a arte que lhe inspira e nem admira a natureza que o espelha.
O lamentável é que, na maioria das vezes, cumpre-nos eleger um só e único caminho dentre os muitos que poderão chegar e atender aos apelos da vocação. São programas de vida e, não necessariamente, o projeto vital. Passam na fantasia mas nem sempre refletem o desejo. Ao escolher alguns, excluímos os demais, onde poderá haver justamente o ponto central. Pode acontecer, e geralmente acontece, que a multiplicidade dos dotes desoriente e perturbe o projeto vital, o chamamento sagrado do fogo interior. Como Goethe que viveu inseguro do seu Eu, do seu desejo, devido à natural exuberância de suas aptidões.
Quantos mais eu vi assim. Tamanha aptidão em confronto com uma vontade duvidosa! E uma vida de tal forma ambígua, flutuando ao sabor do acaso, sem maior determinação interna, torna-se vida em disponibilidade. Goethe queria permanecer eternamente em disponibilidade. Difícil questão: até que linha divisória a disponibilidade é o livre ser, a passagem para o novo, e até que ponto torna-se desperdício:
Tudo indica que Fernando Pessoa, esse grande entre os maiores, tenha sido um caso análogo. A multiplicação de suas vidas possíveis desorientou e perturbou o rumo de seus passos, para o que poderia vir a ser sua vida real, exclusiva, vocacional. Mergulhou por suas próprias palavras e, “progressiva e irreversível disponibilidade”. No vazio da disponibilidade, que fez de toda a sua existência a busca interminável e sempre frustrada da “identidade perdida”. Ou será essa identidade perdida que tira o homem do comum, desse diário ofuscante que preenche falsamente o impreenchível. É a dúvida dos libertos de pensamento, dos que possuem a saudável angústia da tragédia e a visão do paraíso dessa monumental condição humana.
Aqui, neste momento, Julian, penso se estou disponível, se sempre estive e tremo de pavor ao questionar se a disponibilidade já não cabe num homem tão envolvido! Enfim, se me fiz ou se me perdi. Neste inverno madrilenho, ao final da vida, é o meu drama e meu encanto. Ter Goethe e Pessoa como fantasmas e santos do meu sonho e do meu dia”.
Temos todos que vivemos,
Uma vida que é vivida,
E outra vida que é pensada,
E a única que realmente temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada...
Fernando Pessoa
(carta extraída do site http://www.amorc.org.br/msg_ngm.html)
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